A civilidade como produto da mera dissimulação
Décadas após o lançamento da chamada Trilogia dos Apartamentos, o diretor franco-polonês Roman Polanski retorna
a esse tipo de ambiente. Dessa vez, no entanto, não se trata de situações de
suspense, terror e afins, como ocorre em Repulsa
ao Sexo (Repulsion), de 1965, O Bebê de Rosemary (The Rosemary’s Baby), de 1968, e O Inquilino (Le Locataire),
de 1976. Em Deus da Carnificina (Carnage), o realizador transita entre o
drama e a comédia, buscando revelar uma suposta hipocrisia de uma sociedade de
aparências, que está refém do senso comum e do politicamente correto.
Com exceção de duas curtas cenas em um parque, a trama se
passa exclusivamente no apartamento do casal Longstreet, Penelope (Jodie Foster)
e Michael (John C. Reilly), que recebe a visita dos Cowan, Nancy (Kate Winslet)
e Alan (Christoph Waltz). O objetivo do encontro seria conversar sobre a
agressão cometida pelo filho dos visitantes contra o herdeiro dos anfitriões.
No entanto, no decorrer da reunião, a conversa toma outros rumos,
desmitificando a inicial aparência polida de seus protagonistas. Ambientado em
Nova Iorque, mas filmado em Paris, o longa-metragem foi lançado no Festival de
Veneza de 2011. No evento cinematográfico, recebeu duas indicações a melhor
atriz (Jodie Foster e Kate Wislet) e foi agraciado com o Pequeno Leão de Ouro, prêmio
concedido por estudantes de cinema italianos recém-formados.
Co-roteirista do longa-metragem, Yasmini Reza é autora da
peça homônima, montada em diversos países, inclusive no Brasil, e vencedora de
um prêmio Tonny. Como herdeiro dos palcos, o filme está calcado nos diálogos.
Entretanto, visto que se trata de outra linguagem, tem-se uma câmera que
transita entre ambientes e entre a subjetividade das figuras em cena, em vez de
uma visão generalizada do que ocorre no palco.
A relação entre os pais funciona de forma inversamente
proporcional a das crianças, pois eles cometem o oposto dos meninos que, tempos
após a briga, se reconciliam. Os adultos, no entanto, vão, aos poucos, revelando
suas faces egocêntricas, teimosas e, de certa forma, até mesmo infantis. Desde
o início, ficam claras as divergências entre os casais. Até mesmo em momentos
mais contidos, já está evidente a presunção de seus personagens, pois os mesmos
se reúnem para decidir o destino de figuras que não foram convidadas a estar
presentes. No entanto, isso fica mais
latente após o momento em que Nancy vomita. A reação física e involuntária da personagem
funciona como uma espécie de símbolo do que está por vir. A partir daquele
momento, os movimentos e as expressões contidas serão substituídos por um
discurso mais direto, passional e, até mesmo, violento. A conversa sobre a briga
dos filhos é protelada em troca de discussões a respeito da maternidade, do
casamento e de outros elementos sociais, sendo reveladas opiniões pouco afins
ao padrão de sociedade. Ao mesmo tempo em que a discussão se torna mais violenta,
a relação entre os mesmos fica mais íntima. Ao final, eles já se tratam pelo
primeiro nome e, em um determinado momento, chega a ocorrer uma discussão entre
sexos, em que, de certa forma, as mulheres se unem para denunciar suas ânsias
comuns. A ação, inclusive, está centrada principalmente nas figuras femininas,
tanto que são somente elas que cometem agressões contra outrem e contra o
próprio ambiente do apartamento.
Para quebrar o centralismo no diálogo, alguns objetos compõem
as ações do filme, seja o celular onipresente de Allan ou as tulipas na mesa de
centro. O aparelho do personagem de Waltz, inclusive, funciona quase como
uma referência dentro da história. Afinal, é ele um dos elementos que desperta o
desconforto e irritação dos personagens, assim como também é alvo de violência
e, por fim, reabilita-se da agressão, retornando a seus afazeres pré-programados.
De certa forma, também é isso que ocorre com os protagonistas, pois a presença
de outrem lhes desperta sensações negativas, culminando na violência e
retornando, no fim, aos seus aspectos normais, onde devem retornar a suas rotinas.
A própria preocupação com as aparências vai se esvaindo por meio da escolha de consumo
dos personagens, evoluindo de um bolo, para um café, um whisky e, por fim, alguns charutos que, teoricamente, não deveriam ser consumidos na residência de
uma criança asmática.
O filme, no entanto, peca em um elemento crucial: a comédia.
Em cartazes, em resenhas e em sinopses, ele é vendido como the new comedy of Roman Polanski, no entanto, a produção está bem
aquém nesse quesito. Mesmo que os personagens masculinos utilizem de ironia ou
humor em sua maior parte das falas, o que dá o tom é a tensão dos mesmos. Em
alguns momentos, é perceptível a intenção de gerar risadas, mas o humor negro
não consegue quebrar a barreira do choque moral das falas. A crítica proferida
é mostrada de uma forma agressiva demais, dificultando as risadas. Contudo,
isso não quebra totalmente a grandeza de certas partes do diálogo. Dentre elas,
uma das mais evidentes é o vocabulário utilizado por Penelope, em que o uso de palavras
como desfigurado e armado causam reações de discordância da
parte do casal antagonista.
Deus da Carnificina é,
enfim, uma parábola das máscaras da sociedade. Para seus autores, a
hipocrisia ainda é uma característica latente neste mundo em que muitos falam
da pobreza da África, mas, no fundo, estão preocupados somente consigo mesmos. No
entanto, a discussão não tem tanta força, ainda mais quando é comprada com
outras obras de construções semelhantes, como Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (Who’s Afraid of Virginia Woolf?), de 1966, e Doze Homens e uma Sentença (12
Angry Men), de 1957. Nem engraçado, nem provocador o suficiente, o filme funciona
apenas como uma daquelas discussões polêmicas que, no fim, esvaem-se, voltando
tudo ao normal no dia posterior.
Deus da Carnificina
Título original: Carnage
Ano: 2011 Estreia no Brasil: Jun/12
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Yasmina Reza e Roman
Polanski
Com: Christoph
Waltz, Jodie Foster, Kate Winslet, John C. Reilly, entre outros
Duração: 80 minutos
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