quinta-feira, 17 de julho de 2014

Crítica: O lobo atrás da porta

(Crítica originalmente publicada no Jornal do Comércio)

Fábula de horror



Ao longe e desfocado, o Cristo Redentor é visto de uma estação de trem: O lobo atrás da porta não ocorre no Rio de Janeiro dos cartões-postais, mas em um subúrbio longe dos olhares de turistas. Nessa atmosfera mundana, um fiscal de ônibus e uma ex-atendente de telemar-keting se encontram ao acaso e, ao se envolverem, dão início a um círculo de agressões mútuas. O resultado de tudo é a tragédia. Em tom de thriller, flertes com o drama e um pouco de humor, o primeiro longa-metragem de Fernando Coimbra foi premiado nos festivais do Rio e de San Sebastián. Para os próximos meses, já tem estreias previstas para Espanha, México, Coreia do Sul, Canadá, Estados Unidos e outros 15 países.

O filme retrata os fatos que antecederam o desaparecimento de uma menina de 6 anos. Para contá-los, são reunidos, em uma delegacia, os principais envolvidos na história: a mãe, Sylvia (Fabíula Nascimento, de Estômago); o pai, Bernardo (Milhem Cortaz, de Tropa de Elite), e a amante deste, Rosa (Leandra Leal, de Nome próprio). Ao delegado (Juliano Cazarré, de Serra Pelada), os depoentes apresentam contraditórias e incompletas versões sobre o ocorrido, gerando uma espécie de jogo de ilusões e mentiras.

Baseado em fatos reais, O lobo atrás da porta começou a ser gestado há 16 anos, quando Coimbra ainda estava na faculdade. Na ocasião, o cineasta se interessou pela história da “fera da Penha”, um assassinato ocorrido nos anos 1960. Intrigado pela forma monstruosa como o autor do crime era retratado, ele iniciou uma série de pesquisas, que resultaram em um roteiro - retomado e totalmente reformulado somente em 2008. A ideia era submergir no universo daquele personagem, sem fazer avaliações maniqueístas, de modo a abordar o seu lado mais humano.

Embora seja ficcional, o longa (tal qual a história real) se desenvolve em um bairro periférico da capital fluminense. Conforme Coimbra, “a história poderia se passar em qualquer lugar”, mas o fato de ocorrer no Rio de Janeiro a torna mais verossímil, pois os cariocas têm uma personalidade mais aberta e receptiva, como os personagens da trama. Além disso, as locações no subúrbio proporcionavam uma abordagem mais “naturalista”, que facilitava a ideia de que a história poderia ser protagonizada por “trabalhadores comuns”, fora de estereótipos.


Dentro desse ambiente, a câmera observa os personagens tal qual um voyeur: segue personagens a caminhar, aguarda um ambiente à espera de uma ação e se volta a atores de acordo com o que lhe convier. Como os planos são, em geral, mais fechados nos atores e em detalhes do espaço, nem todas as figuras em cena e suas ações são mostradas por completo. “Não queria ficar com a câmera parada o tempo todo, queria que ela tateasse pela cena, meio passeando pelo ambiente, encontrando e perdendo aqueles personagens”, ressalta o diretor, que tem nove curtas-metragens no currículo.

Para complementar essa ideia, foi utilizado o desenho de som, assinado por Ricardo Cutz, pois, em algumas situações, são as sonoridades (como latidos de cães ou alarmes de veículos) que preenchem os recintos e os silêncios. Por outro lado, a música é pouco melódica e funciona quase como fábrica de ruídos, que reverberam na mente dos protagonistas (e do público). Segundo Coimbra, a proposta era usar o mínimo de trilha sonora e lançar mão das sonoridades de maneira mais precisa. “Queríamos trazer o ambiente do subúrbio no som, fazer uma construção sonora para dizer onde eles estão, de como é a vida deles”, comenta. 

Esta visão crua permanece na fotografia de Lula Carvalho (parceiro antigo de Coimbra), que apresenta uma textura granulada e faz um jogo com o enfoque e desfoque de ambientes e personagens, de modo a reduzir o espaço mais nítido da cena. Para o diretor, a ideia era que a imagem trouxesse “um aspecto mais ruidoso, sujo”, pois “se fosse cristalina, não passaria o que gostaríamos”, explica. 

Embora dialogue com aspectos do thriller, O lobo atrás da porta não se restringe aos clichês do gênero. Deste modo, mais do que explicar os detalhes do desaparecimento de uma menina, o filme retrata a montanha-russa emocional pela qual transitam os protagonistas. Assim, é difícil distinguir entre o que realmente ocorreu no universo daquela história e o que foi recriado pelos depoimentos. Afinal, todos os fatos são apresentados em flashbacks introduzidos pelo ponto de vista de um algum personagem.

Como afirma Coimbra, nenhum relato é confiável. “A ideia de contar diferentes pontos de vista é justamente deixar essa sensação de que você pode acreditar ou não, escolher o que acredita. Quem está falando a verdade eu não sei”, finaliza. Cabe, então, a cada espectador montar sua própria fábula de horror.