sábado, 28 de julho de 2012

Crítica: Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge



O ressurgimento do homem por trás da máscara


Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (The Dark Knight Rise) é uma daquelas grandes exceções do cinema, em que praticamente todos os segmentos de público se juntam para assistir ao mesmo produto. Não se trata apenas de mais um blockbuster, mas sim de uma trama que leva, ao mesmo tempo, cinema autoral e excelência técnica à trajetória de uma pessoa que não consegue conviver com traumas do passado.

O último filme da saga se passa oito anos após a morte de Harvey Dent/Duas Caras (Aaron Eckhart), num momento em que os crimes foram praticamente erradicados de Gothan. A morte do promotor público foi o estopim para modificações na legislação e na fuga de diversos corruptos locais. A culpa pelo crime recaiu, no entanto, sobre Batman (Christian Bale), o qual nunca mais foi visto desde aquela noite.  Após sua aposentadoria como super-herói, o bilionário Bruce Wayne isola-se em sua própria mansão. O antes forte justiceiro está frágil, precisando de uma bengala para se locomover. Sem atuar como o homem-morcego, ele se torna uma figura sem propósito, vagando sem diretrizes.  A situação somente começa a se modificar quando Selina Kyle (Anne Hathaway) furta o protagonista. No entanto, é a vinda de Blane (Tom Hardy), ex-membro da Liga das Sombras, que resulta no ressurgimento do Cavaleiro das Trevas . Em contraste com a própria ideologia higienista que propaga, o vilão organiza seus trabalhos nos subterrâneos, isto é, ele organiza a limpeza moral da cidade no local onde a mesma despeja seus dejetos. Além dos já conhecidos Comissário Gordan (Gary Oldman), Alfred (Michael Caine) e Fox (Morgan Freeman), são apresentados novos personagens, como o jovem policial Blake (Joseph Gordon-Levitt) e a investidora Miranda (Marion Cottilard).

Como fechamento bem-sucedido, o filme dialoga com seus antecessores Batman - O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight), de 2008, e Batman Begins (idem), de 2005. Não só personagens são retomados, mas também conflitos já evidenciados nas outras obras. No entanto, dessa vez, a figura central é a própria cidade de Gothan. Ao longo de quase três horas, diversos eus fictícios e subtramas são apresentadas, o que enfraquece a coesão da história. O excesso de situações em alguns momentos resulta em resoluções rápidas e insípidas. A segunda recuperação física de Bruce é, por exemplo, mostrada de uma forma um tanto quanto superficial se comparada à gravidade da lesão. Além disso, o desfile de personagens é tão intenso que o próprio Batman se torna coadjuvante.


O longa-metragem trabalha com situações de contraste entre o corpo e o olhar, a natureza física e a psicológica. Nem sempre a mente aguenta fazer aquilo que é preciso, então, aqueles que nos apoiaram (ou poderiam fazê-lo) nos abandonam, buscando se autoproteger. Os personagens da trilogia de Christopher Nolan não são figuras irreais que colocam a salvação do mundo acima de tudo: eles têm fraquezas, anseios, dúvidas, decepções. O olhar de Blake perante a figura de Batman é impressionante, pois exala de uma forma muito intensa a admiração do jovem policial idealista. A mesma figura que tem o Homem-Morcego como ídolo vê, no entanto, de forma decepcionada o trabalho dos policiais que guardam a ponte que liga Gothan ao resto do mundo. Em contrapartida, o aspecto visual mais evidente em Bane é sua aparência física impressionante, sua máscara assustadora e sua voz grave e raivosa. No entanto, em determinado momento da trama, o vilão mostra seu outro lado, protagonizando uma cena de pura comoção, a qual fica evidente apenas pela única parte do rosto visível, os olhos.

As atuações são, inclusive, uma atração à parte, em especial a de Michael Caine. O mordomo de forte sotaque britânico protagoniza duas das mais emocionantes cenas do longa-metragem. Diferentemente dos dois outros Batmans, dessa vez, ele se mostra cansado e preocupado. A relação paternal com Bruce se modifica e as piadas tão comuns em suas falas dão lugar a diálogos profundos e tristes. Christian Bale protagoniza, por sua vez, um personagem que transita entre o frágil e o inabalável. O ator consegue passar as dificuldades físicas do personagem, ao evidenciar as dificuldades de locomoção e até mesmo para falar. O aspecto verbal, inclusive, é um diferencial, pois há uma grande diferencia entre as vozes de Bruce e Batman.  Além de um disfarce, a fala do super-herói é meio rouca meio grave, como se fosse de alguém que quisesse exorcizar seus demônios. Em contrapartida, Anne Hathaway dá vida a uma sensual e muito elegante Selina Kyle. No entanto, apesar de também participar de cenas de ação, a ladra é a principal fonte de leveza da trama, protagonizando a maioria das cenas de humor e romance.  Já os personagens de Gary Oldman e Morgan Freeman dessa vez têm um pouco menos de destaque, mas continuam exitosos em seus papéis.


Aliada às boas atuações, está a quase onipresente trilha de Hans Zimmer. As canções que embalam a maior parte da trama são tão envolventes e bem encaixadas que dão força às cenas em que não estão presentes. É o caso, por exemplo, do primeiro embate entre Batman e Bane, em que os sons dos golpes embalam a própria cena. O mesmo ocorre no momento em que um menino canta em um estádio de futebol, pois a voz frágil e comovida do garoto dá um tom ainda mais dramático ao que vai ocorrer. Já a montagem sofre em parte com o excesso de subtramas. As cenas iniciais, como o primeiro dos dois discursos de Gordon no Dent Day e o sequestro do Dr. Pavel, se mostram pouco necessárias à narrativa, trucando o desenrolar da história. Apesar disso, a trama está razoavelmente bem costurada e detém algumas boas montagens paralelas, que dão ainda mais dinamismo às sequências.

Do ponto de vista ideológico, a narrativa se mostra um pouco contraditória. Afinal, o mesmo Batman que conviveu na cadeia com diversos presos - e foi ajudado por muitos – parece aprovar o rigor da Lei Dent. Devido à nova legislação, os detentos praticamente têm seus direitos anulados, chegando ao cúmulo de se prender mulheres junto a homens. Independente de pontos de vista políticos, soa estranho a forma totalmente diferente de como são mostrados os prisioneiros de Pietra Dura e os quase maníacos de Arkhan e Blakegate. Ao mesmo tempo, parece ainda mais estranho o fato de que, mesmo após o ocorrido no estádio de futebol, parte da população se alia à Blane. Os tribunais quase jacobinos parecem forçados demais para uma cidade muito mais oprimida e amedrontada do que adepta de um discurso social altamente totalitário.


Apesar de alguns poréns, O Cavaleiro das Trevas Ressurge encerra de forma muito qualificada uma trilogia que provavelmente vai entrar para história do cinema de super-herói. A opção por um enredo mais naturalista, fugindo às fantasias comuns dos HQs e aos maniqueísmos, deram base para o desenrolar de uma saga bem costurada, que dialoga entre si e com a própria sociedade atual. Diferentemente do que li e ouvi por aí, não considero o final ambíguo. Devido às diversas situações dentro da história, em especial ao último diálogo de Fox, parece-me certo que o desfecho de Batman foi realmente aquele mostrado, não sendo, portanto, produto da imaginação de outro personagem.  Os 12 milhões de habitantes da fictícia metrópole norte-americana terão, portanto, que contar com outra figura, caso isso seja necessário.


Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge
Título original: The Dark Knight Rises 
Ano: 2012                          Estreia no Brasil: Jul/12
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan, Jonathan Nolan e David S. Goyer
Com: Christian Bale, Michael Caine, Gary Oldman, Morgan Freeman, Anne Hathaway, Marion Cotillard, 
Joseph Gordon-Levitt, Tom Hardy, entre outros.

Duração: 164 minutos

domingo, 15 de julho de 2012

Crítica: Deus da Carnificina


A civilidade como produto da mera dissimulação


Décadas após o lançamento da chamada Trilogia dos Apartamentos, o diretor franco-polonês Roman Polanski retorna a esse tipo de ambiente. Dessa vez, no entanto, não se trata de situações de suspense, terror e afins, como ocorre em Repulsa ao Sexo (Repulsion), de 1965, O Bebê de Rosemary (The Rosemary’s Baby), de 1968, e O Inquilino (Le Locataire), de 1976. Em Deus da Carnificina (Carnage), o realizador transita entre o drama e a comédia, buscando revelar uma suposta hipocrisia de uma sociedade de aparências, que está refém do senso comum e do politicamente correto.

Com exceção de duas curtas cenas em um parque, a trama se passa exclusivamente no apartamento do casal Longstreet, Penelope (Jodie Foster) e Michael (John C. Reilly), que recebe a visita dos Cowan, Nancy (Kate Winslet) e Alan (Christoph Waltz). O objetivo do encontro seria conversar sobre a agressão cometida pelo filho dos visitantes contra o herdeiro dos anfitriões. No entanto, no decorrer da reunião, a conversa toma outros rumos, desmitificando a inicial aparência polida de seus protagonistas. Ambientado em Nova Iorque, mas filmado em Paris, o longa-metragem foi lançado no Festival de Veneza de 2011. No evento cinematográfico, recebeu duas indicações a melhor atriz (Jodie Foster e Kate Wislet) e foi agraciado com o Pequeno Leão de Ouro, prêmio concedido por estudantes de cinema italianos recém-formados.

Co-roteirista do longa-metragem, Yasmini Reza é autora da peça homônima, montada em diversos países, inclusive no Brasil, e vencedora de um prêmio Tonny. Como herdeiro dos palcos, o filme está calcado nos diálogos. Entretanto, visto que se trata de outra linguagem, tem-se uma câmera que transita entre ambientes e entre a subjetividade das figuras em cena, em vez de uma visão generalizada do que ocorre no palco.


A relação entre os pais funciona de forma inversamente proporcional a das crianças, pois eles cometem o oposto dos meninos que, tempos após a briga, se reconciliam. Os adultos, no entanto, vão, aos poucos, revelando suas faces egocêntricas, teimosas e, de certa forma, até mesmo infantis. Desde o início, ficam claras as divergências entre os casais. Até mesmo em momentos mais contidos, já está evidente a presunção de seus personagens, pois os mesmos se reúnem para decidir o destino de figuras que não foram convidadas a estar presentes.  No entanto, isso fica mais latente após o momento em que Nancy vomita. A reação física e involuntária da personagem funciona como uma espécie de símbolo do que está por vir. A partir daquele momento, os movimentos e as expressões contidas serão substituídos por um discurso mais direto, passional e, até mesmo, violento. A conversa sobre a briga dos filhos é protelada em troca de discussões a respeito da maternidade, do casamento e de outros elementos sociais, sendo reveladas opiniões pouco afins ao padrão de sociedade. Ao mesmo tempo em que a discussão se torna mais violenta, a relação entre os mesmos fica mais íntima. Ao final, eles já se tratam pelo primeiro nome e, em um determinado momento, chega a ocorrer uma discussão entre sexos, em que, de certa forma, as mulheres se unem para denunciar suas ânsias comuns. A ação, inclusive, está centrada principalmente nas figuras femininas, tanto que são somente elas que cometem agressões contra outrem e contra o próprio ambiente do apartamento.


Para quebrar o centralismo no diálogo, alguns objetos compõem as ações do filme, seja o celular onipresente de Allan ou as tulipas na mesa de centro. O aparelho do personagem de Waltz, inclusive, funciona quase como uma referência dentro da história. Afinal, é ele um dos elementos que desperta o desconforto e irritação dos personagens, assim como também é alvo de violência e, por fim, reabilita-se da agressão, retornando a seus afazeres pré-programados. De certa forma, também é isso que ocorre com os protagonistas, pois a presença de outrem lhes desperta sensações negativas, culminando na violência e retornando, no fim, aos seus aspectos normais, onde devem retornar a suas rotinas. A própria preocupação com as aparências vai se esvaindo por meio da escolha de consumo dos personagens, evoluindo de um bolo, para um café, um whisky e, por fim, alguns charutos que, teoricamente, não deveriam ser consumidos na residência de uma criança asmática.

O filme, no entanto, peca em um elemento crucial: a comédia. Em cartazes, em resenhas e em sinopses, ele é vendido como the new comedy of Roman Polanski, no entanto, a produção está bem aquém nesse quesito. Mesmo que os personagens masculinos utilizem de ironia ou humor em sua maior parte das falas, o que dá o tom é a tensão dos mesmos. Em alguns momentos, é perceptível a intenção de gerar risadas, mas o humor negro não consegue quebrar a barreira do choque moral das falas. A crítica proferida é mostrada de uma forma agressiva demais, dificultando as risadas. Contudo, isso não quebra totalmente a grandeza de certas partes do diálogo. Dentre elas, uma das mais evidentes é o vocabulário utilizado por Penelope, em que o uso de palavras como desfigurado e armado causam reações de discordância da parte do casal antagonista.


Deus da Carnificina é, enfim, uma parábola das máscaras da sociedade. Para seus autores, a hipocrisia ainda é uma característica latente neste mundo em que muitos falam da pobreza da África, mas, no fundo, estão preocupados somente consigo mesmos. No entanto, a discussão não tem tanta força, ainda mais quando é comprada com outras obras de construções semelhantes, como Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (Who’s Afraid of Virginia Woolf?), de 1966, e Doze Homens e uma Sentença (12 Angry Men), de 1957. Nem engraçado, nem provocador o suficiente, o filme funciona apenas como uma daquelas discussões polêmicas que, no fim, esvaem-se, voltando tudo ao normal no dia posterior.

Deus da Carnificina
Título original: Carnage
Ano: 2011               Estreia no Brasil: Jun/12
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Yasmina Reza e Roman Polanski
Com: Christoph Waltz, Jodie Foster, Kate Winslet, John C. Reilly, entre outros
Duração: 80 minutos

terça-feira, 10 de julho de 2012

Crítica: Para Roma, com Amor




Quatro doses de humor de qualidade


No livro Conversas com Woody Allen, o cineasta título comenta com o autor, Eric Lax, que mantém guardados em uma gaveta inúmeras gags e afins que ainda não foram postas em prática. Segundo o diretor, em geral, trata-se de pequenas esquetes que talvez não tivessem potencial para originar um longa-metragem. Seriam narrativas curtas, como Édipo Arrasado, um dos três média-metragens componentes de Contos de Nova York (New York Stories), de 1989 . Ao que me parece, Para Roma, com Amor pode ser originário de uma pequena busca nesse recanto de ideias. Afinal, o filme é composto por quatro histórias independentes que, inclusive, se passam em diferentes períodos de tempo, mas que são desenvolvidas de forma intercalada.
Logo no início da obra, o narrador se apresenta como um conhecedor de tudo o que acontece em Roma. A partir daí, o pouco presente funcionário público nos encaminha a quatro situações distintas. Uma delas é o desenrolar do desencontro de um casal interiorano recém-chegado à capital. Ao procurar um salão de beleza, Milly (Alessandra Matonardi) se perde, pairando em meio às filmagens de uma produção cinematográfica. Antonio (Alessandro Tíbero), por sua vez, precisa fingir que a prostituta Anna (Penélope Cruz) é sua esposa. A segunda história é a trajetória de um homem, Leopoldo (Roberto Benigni), que se torna famoso repentinamente. A terceira apresenta o envolvimento de um jovem arquiteto, Jack (Jesse Eisenberg), com a melhor amiga de sua esposa, Monica (Elen Page). Por fim, há a história um casal, Jerry (Woody Allen) e Phyllis (Judy Davis), que vai ao país europeu conhecer Michelangelo (Flavio Parenti), noivo de sua filha Hayley (Alisson Pill).
A narrativa é quase um apanhado de piadas, seja humor pastelão ou não. No entanto, sob o olhar de Allen, tudo se mostra mais refinado, fugindo ao humor barato. O realizador sabe dosar muito bem essa miscelânea de gags, equilibrando e arrancando risadas até de clichês, como medo de voar de avião ou uma pessoa e cantores de chuveiro. Outro aspecto interessante da obra são as falas em italiano. O uso do inglês tem uma certa lógica dentro da trama. As histórias de Benigni e do casal interiorano, por exemplo, são basicamente faladas no idioma da Itália.

Os protagonistas seguem a linha de outras obras de Allen. As mulheres são poderosas, independentes, mas um pouco confusas. Os homens são neuróticos, falam rápido e são facilmente envolvidos pelas mulheres. No entanto, isso não apaga o mérito dos atores, que, em geral, se encaixam bem em seus papéis. O destaque, claro, fica para a aparição, depois de sete anos, do próprio diretor em um de seus filmes. Alec Baldwin também chama a atenção, em especial, devido ao caráter diferenciado de seu personagem, que funciona como uma espécie de consciência do personagem de Eisenberg.
Como já esteve evidente em outras obras como Memórias (Stardust Memories), de 1980, e Celebridades (Celebrity), de 1998, o filme apresenta diversas referências ao cinema italiano, em especial, o felliano. A história do um casal interiorano que vai a Roma, mas se desencontra e a noiva acaba conhecendo um importante ator italiano é a premissa de Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco), de 1952. Já os paparazzi da história protagonizada por Benigni, por sua vez, remetem ao A Doce Vida (La Dolce Vita), de 1960, por exemplo.

Enfim, Para Roma, com Amor é uma interessante comédia alleniana. Em meio a um enredo leve, as piadas que tornaram seu realizador famoso continuam. No entanto, faltou uma complementaridade narrativa, o que dá a impressão de que são pequenas piadas enfileiradas. Apesar de não ser uma obra-prima, como Manhatann (Manhattan), de 1979, o filme é interessante, divertido e detentor de diversos méritos, que vão além das belas paisagens italianas.
Para Roma, com Amor
Título original: To Rome with Love
Ano: 2012                               Estreia no Brasil: Jun/12
Direção e roteiro: Woody Allen
Com: Woody Allen, Alec Baldwin, Roberto Benigni, July Page, Penélope Cruz, Elen Page, Jesse Eisenberg, entre outros
Duração: 102 minutos


Crítica: A Delicadeza do Amor




Quando o feio bonito lhe parece

É preciso seguir em frente, trilhar novos caminhos, andar com as próprias pernas. Talvez esses tipos de metáforas ou clichês não sejam tão usuais na França, mas se encaixam no argumento de A Delicadeza do Amor (La Delicatésse). No filme, dirigido pelos cineastas estreantes David e Stéphane Foenkinos, o ato de caminhar é uma constante. Inicialmente, os passos de Nathalie (Audrey Tautou) percorrem uma rua recheada de toques de cor e integram o ritmo da trilha sonora. Afinal, logo após ela encontrará o apaixonado François (Pio Marmaï), seu futuro marido. A vida da protagonista se torna plena. No entanto, um acidente fatal a deixa viúva. Desde então, seu caminhar passa a ser arrastado, tudo fica cinza e a música se torna quase ausente. Num gesto simbólico, ela joga todos os pertences do falecido no lixo e se atira com todas as forças restantes no trabalho. Três anos depois, quando já havia angariado fama de workaholic, a personagem beija inesperadamente um novo colega de trabalho, o sueco Markus (François Damiens). A partir daí, o mundo certinho da trama começa a ruir e, nesse meio tempo, ocorre muito vai e vem por ruas, parques e corredores.


A empresa em que Nathalie trabalha tem uma forte relação com clientes suecos. Devido a isso, seu chefe, Charles, (Bruno Todeschini) supõe coerente pendurar na parede um cartaz de  Gritos e Sussurros (Viskningar och rop), de 1972,  e servir lanches tipicamente nórdicos. Tudo para que o ambiente pareça habitado por entendedores da terra de Ingmar Bergman. No entanto, a atmosfera de superficialidade não se resume a isso. As próprias relações interpessoais funcionam do mesmo modo. Todos são engomadinhos e bonitos demais. Somente quando se descobre a aproximação da personagem principal com o desengonçado e pouco atraente Markus, os preconceitos vêm à tona. Para os colegas, para os amigos e, principalmente, para o chefe de Nathalie, o sueco não está ao nível da jovem. Para eles, que vivem num mundo de rótulos, a aparência do affair da protagonista é suficiente para rejeitá-lo como possível pretendente . Dentro desse feixe de hipocrisias, o par romântico da personagem principal é a pessoa mais real. Apesar de atender a algumas das idealizações românticas como ser muito educado e apaixonado, ele também é o único que se revolta e toma uma atitude, inclusive, brigando com outro homem. Markus é a figura que foge ao mundinho literalmente colorido da história – a decoração é repleta de pontos de cor, em especial, as primárias.

Em termos técnicos o longa-metragem não foge ao usual, mas apresenta alguns aspectos interessantes. A câmera é usada de uma forma diferenciada em, ao menos, dois momentos: quando François pede a protagonista em casamento – o movimento dos personagens congela e a câmera os circunda, dando uma ideia de que os dias estão a passar; e quando Nathalie é avisada do acidente do marido – a imagem fica desfocada e confusa, evidenciando o estado mental da personagem. Já no mais, não há muito o que acrescentar: a trilha sonora é pouco ousada, atendo-se somente a embalar a narrativa; a fotografia e a montagem são quase burocráticas.

Lançado em 2001, o longa-metragem recebeu duas indicações ao César (por roteiro adaptado e filme de estreia), o principal prêmio da indústria cinematográfica francesa. Curiosamente, o roteiro foi escrito por David Foenkinos, também autor do best-seller que originou o argumento da obra. Para transpor sua história para a linguagem do cinema, o escritor contou com o apoio do irmão Stéphane, diretor de casting há 15 anos. 
A Delicadeza do Amor tem méritos, mas não foge o suficiente dos clichês das comédias românticas, em especial, das francesas. A personagem de Audrey, inclusive, é muito semelhante com outra vivida pela atriz em  Uma Doce Mentira (De Vrais Mensonges), de 2010: ambas são carrancudas, extremamente dedicadas ao trabalho e desinteressadas em se apaixonar. No caso das obras citadas, as personagens tem o mesmo perfil, o que, talvez não por culpa da intérprete, limitou a atuação. De fato, uma das carências do longa-metragem é um aprofundamento psicológico que suprisse a aparência superficial dos personagens secundários. As personalidades ficam calcadas nos estereótipos: a megera a ser domada, o atrapalhado mocinho a conquistá-la e os críticos a apontar defeitos. Portanto, apesar do encerramento poético, o superficial dá o tom. A referência à obra bergmaniana se restringe somente ao cartaz na parede da sala do chefe de Nathalie. Enfim, trata-se de um filme agradável, mas daqueles que fogem à memória no acender das luzes
A Delicadeza do Amor 
Título original: La Delicatésse
Ano: 2011                        Estreia no Brasil: Mai/12
Direção: David Foekinos e Stéphane Foekinos
Roteiro: David Foekinos 
Com: Audrey Tautou, François Damiens, Bruno Todeschini, Pio Marmaï, entre outros.
Duração: 108 minutos

Crítica: Fargo


Nem só as paisagens são gélidas


Por trás da aparente simpatia e educação dos cidadãos de Minnesota, há pessoas gélidas como a paisagem da região. Ambiciosos e ligeiramente incompetentes, homens cometem assassinatos cruéis, enquanto são investigados por uma amável e determinada policial grávida. Sexto longa-metragem de Ethan e Joen Coen, Fargo (idem), de 1996, não é somente uma síntese da filmografia de seus autores.   

A película apresenta aspectos incomuns na obra desses irmãos cineastas, sendo o mais relevante deles um certo maniqueísmo. Apesar de não ter exatamente um protagonista, a policial Marge (Frances McDorman) funciona, de certa forma, como a personificação do bem e da esperança - juntamente com seu marido Norm (John Carroll Lynch). Tal aspecto fica ainda mais evidente pelo fato dela estar grávida. A forma carinhosa como a investigadora e seu esposo se relacionam, além da dedicação e astúcia da personagem, fazem com que a mesma se torne uma âncora para os espectadores. Afinal, existe alguém para o público torcer, diferentemente da maioria dos Coen, em que há uma carência de figuras que causem empatia. O filme tem poucos personagens, os quais alternam de importância durante a trama. 

Os fatos se desenrolam porque Jerry (William H. Macy) decide sequestrar a própria esposa,  Jean (Kristin Rudrüd), visando montar um empreendimento próprio com o dinheiro do resgate. De acordo com o plano, a quantia seria paga pelo sogro rico, Scotty (Tony Denman), e o crime seria executado pelos bandidos Carl e Gaer (Steve Buscemi e Peter Stormare). No entanto, o despreparo dos mesmos resulta em um  triplo homicídio, que chama a atenção das autoridades locais, em especial da policial Marge. Ao longo da história, um sequestro que não deveria causar danos resulta em diversas mortes, algumas bastante bizarras. Humilhado por todos, desde o sogro até os clientes da revenda de carros, Jerry é mostrado constantemente atrás das grades que circundam o lugar onde trabalha. Esses planos evidenciam o sentimento de aprisionamento do personagem e explicam a necessidade dele em conseguir dinheiro para ter um negócio próprio e, finalmente, deixar de ser funcionário do próprio sogro. A ideia absurda de sequestro somente evidenciada a mente transtornada do personagem, que só enxerga seus objetivos, não se importando com os demais, nem mesmo com o filho.

É difícil imaginar outros intérpretes para os personagens. Possivelmente, isso ocorra porque os Coen escrevem os roteiros já pensando em que atores escolherão. É admirável, portanto, como o sequestrador tagarela e dotado de uma fisionomia engraçada (como testemunhas salientam diversas vezes durante o filme) combinou com a figura de Steve Buscemi. Outro mérito de Fargo é o sotaque e o Minnesota Nice, denominação referente à forma polida e educada dos cidadãos dessa região. O jeito cantante de falar e o uso de expressões como a europeia “yeah”, aliada aos sorrisos e à complacência dos personagens, trazem à trama um ar regionalista pouco comum no cinema norte-americano. Ironicamente, essa aparência pacata e confiável, na verdade, esconde personagens ambiciosos e criminosos.


Logo no início de Fargo, os Coen fazem uma piada com os espectadores: surge uma legenda, na qual se afirma que o longa é baseado em fatos reais. No entanto, como fica expresso nos créditos finais, a história foi totalmente produzida pela imaginação fértil de seus realizadores. Tal situação colocou o cinema em seu devido lugar, no mundo dos sonhos e da ficção, sem compromisso com a verossimilhança. Com seus personagens patéticos e acontecimentos absurdas, Fargo é um, talvez o melhor filme de Joel e Ethan Coen. O longa-metragem conta com lindíssimos planos gerais, que demonstram o vazio e gélido ambiente de Minnessota, e uma trilha sonora pontual e eficiente. O elenco está afinado, inclusive Peter Stormare, que interpreta um sequestrador de pouquíssima palavras, mas muitas ações. Uma constante durante toda a obra, o humor diferenciado dos realizadores conduz a narrativa de forma sutil, mas clara e competente.  O longa-metragem é, enfim, uma narrativa incrivelmente bem construída, que nos arranca risadas nos momentos mais absurdas, ao mesmo tempo, que proporciona sentimentos que vão do desprezo ao afeto.


Desde Barton Fink (idem), de 1991, os Coen não atingiam tanta recursão. Nesse caso, seu destaque foi maior no Oscar daquele ano, o qual indicou Fargo em sete categorias, sendo vencedora em duas, roteiro original e  atriz (Frances McDorman). Em Cannes, por sua vez, o longa-metragem foi agraciado com a Palma de Ouro de melhor diretor para a dupla de cineastas. Curiosamente, foi devido a esse sucesso de público e crítica que a mais eficiente farsa dos Coen foi descoberta. Somente após a indicação de Roderick Jaynes ao Oscar de melhor montador, por Fargo, descobriu-se que o mesmo era uma figura fictícia. Surpreendentemente, os cineastas confessaram o fato e alegaram já terem créditos demais em seus filmes, pois já são responsáveis pela direção, produção e roteiro.  De fato, o longa-metragem é a cara de seus realizadores, desde os personagens patéticos até as situações insólitas. As estranhas ambições e os acontecimentos frívolos típicos dos Coen estão ainda mais inteligentes e envolventes. Os diretores sintetiza o humor saliente de O Grande Lebowski (The Big Lebowski), de 1998, com o tom noir de O Homem que não Estava lá (The Man Who Wasn't There), de 2001, em uma mistura inusitada e muita bem realizada. O filme, portanto, tem todos os méritos para se transformar num clássico moderno e um dos maiores filmes dos anos 90.


Fargo
Título original: Fargo
Ano: 1996
Direção e roteiro: Ethan Coen  e Joel Coen
Com: Frances McDorman, William H. Macy, Steve Buscemi, Peter Stormare e outros.
Duração: 98 minutos